segunda-feira, 24 de março de 2014

Risquinhos malditos


        São tantos risquinhos nessa folha de papel que dá até raiva de começar a leitura. Bem, é claro que a professora tinha que passar um livro. O problema não é o livro, são as perguntas depois que a gente lê. Ela faz uma arguição tão medonha que nenhum resumo de internet ajuda, por isso a solução mais óbvia é ler. Mas o que fazer se a leitura é uma atividade tão chata? Por que ela não podia passar um filme baseado no livro? Eu assistia com gosto e, se ela quisesse ainda levava um relatório e uma maçã de presente, embora eu ache que esse lance de todo professor gostar de maçã seja só um mito. Talvez ela seja humana e não uma máquina de ensino que funciona a base de maçãs. Seria intrigante se fosse.

        É claro que, não bastasse passar livros, sempre me escolhia para responder as perguntas na sala de aula, não tenho nada contra isso, mas ela bem que podia tentar acertar meu nome (ou me chamava só de Bel ou de Vih). Prazer, Mara Belinácia Viana da Silva. Calma, eu explico. Minha mãe queria fazer uma homenagem a mãe dela, minha avó, e escolheu o nome Maria. Infelizmente o escrivão era surdo de um ouvido e o outro já não funcionava muito bem. Em vez de Maria, recebi o nome de Mara. O lado bom é que ele não acrescentou nada (já pensou se meu nome fosse Maraia?). Quanto ao segundo nome não teve erro. Minha mãe se chama Belinda, meu pai Inácio, logo a primeira filha se chamaria... Pois é. Minha irmã mais nova recebeu um nome mais normal, por que eu cheguei falando o quanto ela ia sofrer com um nome estranho como Lindinácia. Sugeri Lívia. Claro, tinha que ter o toque especial dos meus pais, então para parecer completamente intencional adicionaram o Mara na frente do nome dela. Mara Lívia.

        Família de classe média faz isso com os filhos.

        Letras, letras... Por que vocês existem? Li o livro em quarenta minutos, anotei algumas coisas importantes e fui dormir. A arguição era amanhã e não queria o pessoal aqui em casa caíndo em cima de mim por uma nota baixa em interpretação textual. Tá, não é só por isso. O Gui gosta muito de ler, anda sempre com um livro embaixo do braço, já pensou se eu impressiono? No intervalo, ele fica lendo com um sorriso lindo estampado no rosto, pelo menos na maioria das vezes. Tem dias que ele deixa escorrer uma lágrima, outros dias ele fica com uma cara tão tensa e tem um clima tão pesado ao redor dele que tenho até medo de chegar perto.

        Uma vez até perguntei como se gostasse: - O que você tá lendo?

        - Um livro. - E nunca mais nos falamos.

        Foi nosso primeiro e último diálogo, embora sempre que ele olha pra mim pareça desesperadamente querer me dizer "me desculpa, não quis ser um idiota". Mas não me importa muito o que ele quer ou pareça querer dizer. Um pedido de desculpas silencioso, não é um pedido de desculpas. Ponto final.

        Eu já estava deitada, quase dormindo, quando Gui me sumiu da lembrança e apareceu um monstro gritando "zero, tirou um zero". Levantei e fui até a cozinha. Tinham cinco maçãs na geladeira. Separei a mais vermelhinha para amanhã e fui dormir.

        Quem sabe eu tinha sorte e ela estava de bom humor.

Laura Penha




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